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O menino, o mar e o maceió

O menino, o mar e o maceió
Christian e Christian

Lembro bem daquele dia. Estávamos só nós dois no Maceió da Praia de Jacarapé, onde o rio encontra o mar. As ondas batiam com força, sempre me puxando, querendo me levar mar adentro. Mas o senhor estava lá, me segurando. Sentado, eu ficava quieto entre suas pernas, enquanto o senhor me segurava firme, sem parecer fazer esforço algum. Naquele momento, enquanto o barulho da água rugia, a sua voz entrava no meu ouvido, trazendo verdades que eu daria tudo para escutar de novo. Faria tudo, porque era só isso que eu ouvia: a voz que me guiava.

Havia outras vozes, outros sons, mas era só naquela que eu precisava prestar atenção para saber o próximo passo. Como eu sabia disso? Não sabia. Nem pensava nisso, na verdade! Eu só seguia o que aquela voz mandava. E ficávamos ali, parados, estáticos. Quanto mais forte a correnteza puxava, mais firme o senhor me segurava, e mais eu confiava. Confiava naquela voz.

Hoje, já adulto, não consigo mais ouvir essa voz com a nitidez daquele menino, que não ouvia mais nada ao redor. Mas ela ainda é muito clara para mim, principalmente nos momentos difíceis. Às vezes, ela some um pouco, abafada por tantos ruídos que apareceram depois e não vão embora. Mas basta o senhor levantar a voz, que os outros sons se calam, e eu consigo lembrar para onde estava indo. Lembro até o que eu estava fazendo! E consigo voltar a fazer.

E sigo assim, confiante de que, sempre que eu precisar, aquela voz vai surgir de novo e me mostrar o caminho. Sei que ela vai pegar na minha mão e me guiar com cuidado, mas também sei que ela vai insistir para que, de um certo ponto em diante, eu siga sozinho. O problema é que nunca consigo adivinhar que ponto é esse. De repente, o senhor me solta, e lá vou eu, levado pelo rio em direção ao mar. Olho para trás sem entender nada, mas o senhor só sorri e me encoraja a continuar nadando.

Aí bate o desespero. Não faz sentido ir em frente e me arriscar no mar aberto. Não sei se vou para a esquerda, buscar a areia mais perto, mas nossas coisas ficaram do outro lado, teria que atravessar tudo de novo. Ir para a direita? É mais longe, mas talvez não precisasse cruzar o rio outra vez. Ou será melhor voltar? Tentar nadar contra a correnteza, me matar de fazer força só para descobrir que não saí do lugar? No melhor cenário, eu estaria exatamente onde comecei.

As vozes começam a discutir, e eu fico ali, parado no meio do dilema, enquanto o mar me leva para onde quer. Preso na encruzilhada, esqueço até de nadar. É quando a voz se aproxima de novo. Sem gritar, sem correr, ela apenas chega. E pronto: lá estava eu, de volta, seguro entre as suas pernas. O senhor me segurava firme. A correnteza ainda estava lá, mas eu já estava mais acostumado. Não entendi por que o senhor me soltou, nem por que me segurou de novo, mas eu entendia: “no meu pai, eu sempre poderei confiar”.

Só que dessa vez, o senhor começou a me puxar para trás. Foi me levando para a parte mais rasa, mais rio do que mar, onde as ondas eram mansas. Que alívio! Finalmente consegui respirar com calma, até fiquei em pé um pouco. O senhor colocou a mão no meu ombro e falou, com aquela calma de sempre:

“É difícil mesmo. Tem que ir com calma, pensar, analisar… Não dá pra ‘só ir indo’, não. É perigoso.” Ele me olhou bem nos olhos. “Mas olha, tu agora já viu como é. Já sentiu como faz pra ficar lá. Agora, tem que ver como sair.” Deu uma pausa. “Mas isso aí é contigo. Eu não vou estar sempre aqui, não, então tu tem que desenrolar.” E finalizou: “Se não, quem é que vai cuidar das coisas?” “Vai lá, desenrola.”

Assim que terminou de falar, ele me levantou pelos cotovelos (eu segurando firme neles, mãos juntas no peito) e me arremessou. Por um segundo, eu estava voando por cima daquela parte do maceió que, minutos antes, eu só atravessei com a ajuda dele. Caí na água, quase no mesmo lugar onde achei que ia me afogar segundos atrás.

Só que, dessa vez, foi diferente. Consegui me controlar melhor. Consegui respirar, parar pra pensar, analisar a situação. Eu sabia que meu pai estava ali atrás, pronto pra me salvar se algo desse muito errado. Eu confiava nisso. Mas eu também sabia que, se dependesse dessa segurança pra sempre, eu nunca sairia dali. A voz dele já tinha dito o que esperava: que eu desenrole. Descobrisse. Errando, pedindo desculpas, errando de novo. Tentando consertar. Errando mil vezes se fosse preciso. Errando sempre, mas nunca desistindo de acertar. E acertando. Acertando até errar de novo. E quando errasse, era pra lembrar que eu já tinha errado outras milhares de vezes, mas sempre conseguia acertar de novo. Era só continuar tentando.

E se eu errasse feio? Também não tinha problema. Meu pai estava logo ali atrás! Todas as vezes que errei feio e me perdi, aquela voz surgiu de novo pra me lembrar o que eu estava fazendo (nadando!) e pra onde eu estava indo (decidindo se ia pra frente, pra esquerda ou pra direita). Ok, então lá estava eu de novo. Nadando, agora numa área que já era mais mar do que rio.

Eu sabia que, se virasse pra trás pra olhar pra ele, talvez não conseguisse me virar de volta pro mar. Mas eu também sabia que ele estava ali, e que se eu cansasse, ele apareceria pra ajudar. Ok. E eu sabia, principalmente, que ele tinha dito que eu precisava “desenrolar”. Então, era isso que eu ia fazer. Desenrolar!

Comecei a nadar, tentando sentir onde a correnteza era mais forte, onde era mais fraca. Tentei imaginar o que aconteceria se eu só me deixasse levar por ela (e logo vi que não era boa ideia). Agora, pelo menos eu já sabia o que não fazer! Fui seguindo, mapeando o caminho. E enquanto eu nadava e pensava, algo mudou. A correnteza começou a parecer mais fraca. Sem que eu percebesse, fui me acostumando com ela. Sua presença ficou natural. As ondas estavam maiores ali, mas, estranhamente, era mais fácil ficar estável. Até que aquele mar desafiador virou o que antes era o rio. Calmo.

“É isso!”, pensei com um sorriso. “Desenrolei!”

Ali, eu conseguia parar, analisar, entender tudo com calma. E percebi mais: eu nem precisava sair do mar! Antes, o único caminho que fazia sentido era voltar pra areia. Mas eu queria mesmo ir pra areia? Não! Gritei pra ele, a voz saindo mais confiante do que nunca:

“Pai, a gente pode ficar mais um pouquinho aqui?”

A resposta veio por cima do barulho das ondas, carregada de orgulho:

“Claro, meu filho. Pode ficar o tempo que a gente quiser.”

E ficamos. O tempo que a gente quis. Brincamos de luta (quer dizer, o senhor brincou, eu dei o meu melhor), nadamos contra a correnteza, nos deixamos levar por ela, fomos pra areia, corremos, rolamos, tentamos pegar marias-farinhas. Até com uma caravela a gente brincou de modo indevido e nos queimamos, mas nem doeu, só rimos muito (lembrei que, na vez anterior, eu tinha chorado um bocado). O sol foi embora, e ficamos vendo as estrelas aparecerem.

“Ali é o Cruzeiro do Sul”, o senhor apontou. “Se a gente fizer assim, sabe que ali é o Sul.” Depois mostrou outras. “Ali é o Cinturão de Órion, ou 3 Marias, como também pode ser chamada. Se a gente pensar assim, dá pra ver o Órion inteiro.” Eu olhava, mas não via Órion nenhum. “Se a gente se perder, dá pra olhar pro Cruzeiro do Sul e se localizar. Na praia é mais fácil. O Sol sempre nasce no Leste e se põe no Oeste. Pode olhar agora.”

Fomos andando de volta pra casa dos meus avós enquanto ele explicava. Lá, tomamos banho de chuveiro, rindo do nosso dia. O senhor entrou na piscina pra nadar com Camila, pois ela estava com medo de tubarão. Luana decidiu ficar lendo do lado de fora, ali do lado. Eu fui pra minha casa na árvore, no pé de manga, que o senhor me ajudou a construir. Lá dentro, no silêncio, eu só ouvia minha própria voz. Podia fazer planos, tentar entender as coisas, decidir o que fazer.

Foi numa dessas que a ficha caiu de verdade sobre aquele dia no maceió. A lição era maior que o mar. Era sobre ter a segurança de poder contar com o senhor, mas também a liberdade de ter que encontrar o meu próprio caminho. Obrigado por me assistir seguindo pelo caminho errado, mas me deixar seguir, porque eu preciso aprender por conta própria. Obrigado por, ainda assim, sempre aparecer quando eu preciso.

Não existe nada melhor que o senhor poderia ter me dado do que essa confiança: a liberdade de seguir sozinho, sabendo que nunca estou só de verdade. Obrigado por, mesmo assim, ter me passado tantas outras: virtudes, jeitos de ver o mundo, responsabilidades, e um monte de coisa que eu nem sei ainda. Obrigado por ser meu pai, e por ser o melhor pai. O senhor sempre estará presente em cada conquista minha, em cada vez que eu precisar “desenrolar”.

Do seu filho, lobinho, escoteiro, sênior, companheiro e amigo,

Christian Filho, filho de Christian

4 respostas

  1. Ual, que declaração linda.
    Vocês são os melhores presentes que Deus me deu.
    Obrigado por ter ouvido, obrigado por ter compreendido tudo e obrigado por ser quem és.
    Te amo filho 😍🥰

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