Para Giu, meu eterno amor
Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos, mas não somos como nossos pais.
Graças a tudo o que fizemos, não somos mais os mesmos. Nossos ídolos mudaram, e há muito não vamos àqueles campos de morango. Há quem acredite que nós nunca tenhamos ido embora, e ainda estamos nas mesmas árvores, como nossos pais. Há até quem faça dessa crença sua religião, vivendo e morrendo por ela. Acredito que eles nunca entenderam o amor.
Não tivemos uma vida parecida. Entre tantas diferenças, a sua festinha de 9 anos foi da Moranguinho, enquanto a minha foi do Homem-Aranha. Eu não estava presente para avisar a sua mãe de que, das 3 versões do desenho que ela usou na decoração, nenhuma era a que você gostava.
Ainda que estivesse, também não sei se o faria.
Afinal, eu não imaginava que houvesse vida além do meu campo de morango. Às vezes ele se estendia até a fronteira do maceió em Jacarapé, e eu quase vislumbrava que a realidade poderia ser muito maior do que o meu jardim. Porém, na maior parte do tempo, eu apenas escalava algum morangueiro para ficar mais perto do céu e aproveitar a vista.
Por uns 15 anos, essa foi minha vida. E que vida! Nada para me preocupar.
🎵 Strawberry Fields Forever 🎵
No entanto, com o tempo, compreendi que aquele campo de morango não era real, ou melhor, ele existia apenas na minha cabeça. Não que eu tenha “entendido a realidade”, mas certamente ela era maior do que aquele jardim.
De lá para cá, embarquei em inúmeras expedições. Plantei novos morangueiros, podei outros, enterrei alguns. Cerquei algumas áreas, enquanto a outras retorno sempre que possível.
Viver era mais fácil com os olhos fechados, mas como poderia fazê-lo depois de descobrir que ainda há tanto para explorar?
Somos exploradores por vocação. Frequentemente nos perdemos, mas sempre nos encontramos (às vezes, naqueles campos onde a única preocupação era disfarçar a frustração por não encontrar nenhuma lembrancinha da Moranguinho certa, ou a esperança de ser picado por uma aranha radioativa e despertar com superpoderes).
Nossos hiperfocos não são os mesmos, e ao invés de ansiarmos por um mundo todo vermelho a combinar com nossos desenhos favoritos, pensamos em como os “Doces Sonhos” poderão contribuir com a educação da nossa futura filha.
Poderíamos ser os mesmos, mas escolhemos a contramão.
Nossos eternos campos de morango
Em uma das minhas jornadas, encontrei você.
As expedições que eu empreendia, por mais divertidas que fossem, eram sempre solitárias. Cheguei a crer que essa fosse a própria natureza humana. Por mais territórios que desbravasse, a experiência permanecia intransferivelmente minha.
Eu ouvia atentamente as histórias dos campos alheios, esforçando-me para visualizar seus morangueiros e os galhos onde os outros costumavam repousar. Contudo, minha imaginação invariavelmente os preenchia com elementos das minhas próprias paisagens, sem que eu jamais contemplasse diretamente uma folha sequer que não fosse do meu pomar.
Aquele campo era só meu. Os outros eram deles.
Com uma boa história, eu poderia até jurar que estava lá, com eles, mas sabia ser impossível.
“A mente humana não foi criada para isso” – eu pensava.
Pela graça da realidade, eu não poderia estar mais errado.
Eu te vi antes de nos vermos. Contemplando sua foto, percorria suas palavras enquanto sua voz ecoava, ressoando e retumbando por todos os campos que eu já havia trilhado. Você contava como havia revisado a Matemática negligenciada nos tempos de escola, aprendendo a contar melhor, e como tinha um coração que pode ganhar o tamanho de um milhão.
Você explicava que tinha uma casa para onde sempre podia ir (e que hoje é nosso lar).
Mesmo com seu imenso dom para contar histórias, onde cada palavra parecia lapidada com precisão infinitesimal ao longo de uma infinidade de anos, nenhuma delas foi capaz de ofuscar o brilho do seu sorriso. Se suas palavras sacudiram os alicerces da minha realidade, seu sorriso a transfigurou por completo. Eu achava que você havia se tornado um novo filtro para minha realidade, mas, novamente, eu me encontrava redondamente enganado.
Quando nossos olhos se encontraram, finalmente compreendi. Na verdade, tornou-se impossível não compreender.
Após 22 anos de jornadas solitárias, você surgiu.
Esculpida com tudo o que eu sequer suspeitava buscar, eu vi. Não enxerguei apenas você, eu passei a enxergar. Por vinte e dois anos explorei meu universo cego, surdo, até perceber que ele nunca foi verdadeiramente meu. Meus olhos arderam com a primeira luz. Meus ouvidos custaram em entender o que era, de fato, o som. Afinal, foram longos anos imerso em ruídos que eu apenas sentia como vibrações na pele. Ruídos esses que nem sequer existiam! Mas meu desespero por ouvir era tanto, que eu inventava sensações para chamar de música.
Muito além das gérberas, das ixoras e dos shimejis, você é meu cajueiro.
Já tentei pintar, escrever, gritar, até mesmo arrancar lascas de qualquer superfície linguística na esperança de te mostrar meu campo de morango. Mas essa tarefa é impossível! Ela transcende os limites da própria linguagem.
Felizmente, nunca precisei de nada disso.
Sigo tentando, seja pelo amor ou pela arte, mas a verdade é que você está aqui, comigo.
Já cheguei a acreditar que existiam duas Giu’s, uma que eu havia criado para compartilhar comigo um galho ao pôr do sol, e a outra, real, em seu próprio morangueiro, talvez imaginando o mesmo. Hoje, porém, aperto você em meu abraço, sinto seu cheiro e vejo o tempo suspender seu curso, acanhado, para que possa escutar sua voz.
Se antes me via como um explorador, hoje me reconheço Evangelista, João Batista, doutor Edmundo e o próprio pavão.
Os soldados, os cidadãos e o conde talvez acreditem que nossa história seja um conto de amor à primeira vista (e podem até ter sua parcela de razão). Contudo, a verdade é que foram 22 anos de uma busca por você. Cada semente que plantei, cada árvore que podei, tudo foi para você.
Cego, surdo e ignorante, sem a mínima noção do que era a vida, eu a cultivava à sua espera.
Ainda não compreendo porquê campos de morangos e, honestamente, não tenho certeza para onde estou indo. No entanto, isso já não me importa.
Enquanto pudermos saborear nossos morangos à temperatura ambiente, qualquer noção de destino ou jornada torna-se deliciosamente irrelevante.
Não entendo o amor. Não decifrei a vida, nem o tempo. Não sei como será o amanhã e, por vezes, esqueço o que foi o ontem. Na verdade, não sei quase nada.
Seja o que for, aconteça o que acontecer, não poderia querer mais nada além dos nossos eternos campos de morangos.